VOTAÇÃO DO CONCURSO DE CONTOS "Um Rio Interior"

Apresentamos o conto "Um Rio Interior", da autora Marineth Vitorino dos Santos (adulta)
Leia aqui o conto na íntegra. Para votar, é só curtí-lo Um Rio interior no Facebook
(infelizmente curtidas em páginas compartilhadas não poderão ser contabilizadas)



Um Rio Interior

                 Estou  sozinho e meu  cachorro que me acompanha há dezesseis anos,  está morrendo. Há dezesseis anos ele me recebe todos os dias com a alegria sempre renovada. Ele é mais forte do que eu em sua dignidade cachorral. Não suportando  tanto sofrimento conversei com a veterinária , duas vezes , na intenção de acabar definitivamente com suas dores. Mas sua vontade de viver é tão forte que, mesmo cego, sem andar direito ele recomeça.


- Olá doutora. Bom dia! Acho que meu cachorro tem espírito de gato. Ressuscitou de novo. Ficou sem comer e beber água dois dias. Espirrando muito forte, sangrando e sem caminhar. Pensei que fosse o fim. Mas no outro dia se alimentou e caminhou. O olho continua infeccionado.
- Hoje estou impossibilitada de ir aí, mas continue com a medicação.
Sendo um senhorzinho, ele tem que reaprender a caminhar sem a visão. O mundo tornou-se escuro para ele. No início batia com a cabeça na parede sempre que caminhava, sem lembrança espacial. Mas agora caminha vagarosamente e tateia com as patas o espaço. É preciso se reinventar...
                 Assim também estou. Sem direção. Tateando alguma coisa que brilhe na escuridão.  Meus olhos percorrem minha casa. Minhas  roupas, almofadas, talheres na cozinha... Tem muita coisa fora do lugar. Não tenho  vontade de arrumar nada. Nem de me alimentar. Quero dormir, dormir, dormir para sempre e não tenho coragem suficiente para realizar qualquer ato. Olho para o mural de fotos na parede e vejo minha imagem, abraçado com Clarisse. Estávamos em Paris, reparo seu olhar, a forma como ela enlaçava seus dedos em minha mão sobre o ombro dela e o seu sorriso. Meu Deus! Como pude deixar escapar esta mulher? Estou desamparado e choro sem motivo aparente, logo eu que sempre fui durão e nunca tive facilidade para chorar. Tudo me incomoda e investigo o sentido de toda a minha vida.
                 Desde que voltei de Paris , vivo  neste apartamento no bairro do Catumbi. Vivi até os 24 anos neste bairro. Hoje estou com 54  e como tudo mudou. Caminho pela Rua Itapiru e não vejo mais a sapataria, nem a quitanda do Sr. Manoel. Elas não existem mais. A escola pública na qual estudei continua lá, mas perdeu sua nobreza, está completamente largada pelo poder público. No cemitério do Catumbi a grande e deserta escadaria de pedra, ao lado dele, continua sem muitas mudanças.
                 Foi no cemitério que dei o primeiro e inocente beijo. Perto de uma mangueira frondosa e perto das catacumbas. Nossa pureza infantil já trazia em si a música na qual bailavam a Morte e a Vida, a Luz e a Sombra. O medo, a adolescência, a transgressão e o desejo eram saboreados. Eram os primeiros passos que iam além dos muros da casa onde morávamos.
                 Olhando o quintal da casa de minha mãe, na Rua Van Ervem no Centro, pude  sentir meus irmãos correndo, rindo , brincando de pique esconde e de futebol. Posso ouvir as cantigas de roda e  o som de minha  irmã pedalando a maquina de costura. Antes  mamãe costurava a mão  e , também,  fazia roupas de crochê para os filhos. Minha irmã pedalava de um lado para o outro, principalmente, na semana de carnaval confeccionando  nossas fantasias. Feitas com o mesmo tecido tanto para os meninos quanto para as  meninas. As cores eram padronizadas pelos blocos: branco e vermelho se desfilássemos no Vai Quem Quer ou preto e amarelo se brincássemos no Bafo da Onça... Fantasiados percorríamos   junto aos foliões,   as ruas do Catumbi, do Estácio protegidos pelas grossas  cordas de sisal  durantes os ensaios. No grande dia do desfile na Avenida éramos aplaudidos pelas pessoas na então arquibancada de madeira, montada e desmontada todo ano. Chegávamos  na praça onze, no edifício balança mais não cai, na central e caminhávamos por toda avenida presidente Vargas, até  a  Avenida rio Branco.
Os fantasmas de minha mãe, das namoradinhas, do jogo de futebol , o joelho ralado, o dente quebrado, o carnaval... Tudo estava envolto numa atmosfera e paisagem que não mais existiam no exterior, cresciam para dentro de mim em meu rio de  silêncio. A casa, o quintal onde brincara tudo ainda estava lá, mas outros a habitavam. A nostalgia,  estava rondando... Um aperto no coração, um choro sem motivo e uma saudade de Clarissa despontava...  Mas tinha que reagir.
Fiz a barba, me perfumei, aparei meu bigode e notei que alguns fios espessos e grisalhos  ficaram sobre a pia. Bonitinho e cheiroso  fui  andar sem destino pela cidade. Afinal, estava com fome de mulher e na cidade mais bela do mundo: o Rio de Janeiro. Sem direção peguei um ônibus no largo do Catumbi. Atravessei o túnel e me  emocionei quando passei pelo bairro do flamengo e  visualizei a areia , o mar e lá no horizonte  a imagem do morro da Urca. Senti o vento nas folhas dos coqueiros, das   amendoeiras, a  e lembrei-me da canção de Tom Jobim : Minha alma canta, vejo o rio de Janeiro. Estou morrendo de Saudades...
Saltei na Praça General Osório, em Ipanema e  Pensei: aqui em Ipanema tem cachorro de todas as nacionalidades: indiano, francês, italiano, polonês... Atravessei a rua e cheguei  na pedra do arpoador. Era final de tarde, podia ver o crepúsculo e ainda apreciar todo o horizonte, de um lado via a praia do Diabo e Copacabana e do outro  Ipanema e Leblon. Era mar que não acabava mais. Olhei para a pequena praia do diabo, as ondas quebravam de forma diferenciada pela geografia do lugar e senti medo. Desde criança achava que alguma coisa terrível iria sair das profundezas daquele  mar.
A noite estava chegando, ficando mais escura, resolvi descer e  percebi um homem com  capuz dentro de uma das grutas na pedra. A brasa do cigarro que ele fumava chamou minha atenção e tratei de descer a pedra o mais rápido que podia, acocorado, para não escorregar e me machucar.
Peguei o  bondinho e fui para santa Teresa jantar no famoso Restaurante Extra Ser - especializado em frutos do mar. Sentei me na cadeira de madeira escura e fiz o pedido de uma deliciosa moqueca capixaba. Percebi que demoraria ser atendido pois o ambiente estava cheio e o atendimento era lento. O  cheiro dos temperos era algo indizível. Pedi um chope enquanto esperava e belisquei uns pasteizinhos de camarão  deliciosos. Observava o contraste entre as paredes com  tijolos aparentes e o grande lustre no teto. O lustre parecia  deslocado de algum outro lugar mais formal, porem estava totalmente harmonioso naquele ambiente. A música aconchegante tocada, ao vivo, pelos  chorões  davam um colorido ao lugar.  Qual foi minha surpresa ao olhar para uma  outra mesa: vi Clarissa no lado oposto com outro homem. Tive que engolir o  ciúme, o orgulho e  a raiva. Clarissa também me viu e , desconcertada, logo foi embora com o namorado. Vê-la com outro homem fez minha fome por mulher aumentar.
Chateado, fiz uma tentativa para seduzir a cantora do grupo de chorinho. Tentei me aproximar, mas ela já estava acompanhada. Era bem tarde e depois de tantas  cervejas perdi a noção da hora. Então, olhei para a garçonete que sorria para mim com seus lábios escalartes, então paguei-lhe uma cerveja.  O papo estava fluindo,  quando não se sabe de onde um poodle  sentiu algum cheiro em minha perna. Fui amistoso no início, pois ele podia estar sentindo o cheiro do meu cachorro; mas o bichinho pulou sobre minha perna freneticamente  fazendo movimentos  de vai e vem com os quadris. Sem saber o que fazer e já tendo tomado vários chopes  chutei e empurrei  o cãozinho que enlouquecido, continuava querendo fazer de minha perna um objeto sexual. Ao se deparar com a situação, os lábios escarlates da garçonete se transformaram em lábios de fogo e voltavam-se contra mim:
 – Seu animal, larga o cãozinho! Você está machucando ele.
Já eram quase três horas da madrugada, algumas pessoas que  ainda estavam no bar olharam para mim  de forma ameaçadora e começaram a gritar: Mau caráter! Deixa o bichinho!  Eu ia me encolhendo e me sentindo  cada vez mais constrangido. O cãozinho machucado correu para o colo da garçonete ganindo. 
Emplumei o peito e chamei o taxi. O dia nascia claro e sabia minha direção: voltar para  a praia do Diabo em Ipanema. A praia ainda estava deserta. Tirei os sapatos, as meias, desabotoei a camisa, a calça, tirei a cueca e  caminhei nú  pelas areias fofas decidido a chegar na beira do mar. Num ímpeto mergulhei e fiquei esperando algum monstro sair das profundezas no mar revolto. Invoquei iemanjá para me levar embora aliviando todo o  meu cansaço e minha solidão.  Mas as águas eram maternais, lambiam minhas feridas e  desatavam meus nós. Eu estava só e nú. Andaria nú pela cidade?
O banho de mar e a luminosidade do dia resplandecia dentro de mim. Vesti a roupa e fui para casa. Decidido peguei o chaveiro, escolhi a chave certa e os portões se abriram. Eu podia escolher: uma nova humanidade Consciente e Crescida ou  voltar para os meus nós cotidianos.

Entrei no quintal. Acariciei meu velho amigo e observei, em silêncio,  sua  decadência e ao mesmo tempo sua dignidade cachorral.  Sim,  era   um novo dia. Uma luminosidade especifica deixara um pedacinho do Rio de Janeiro dentro de mim. E em meu coração sabia que estava fazendo todo o  possível para ajudá-lo. Precisava, apenas, confiar na vida e deixar todo o amor do universo transbordar. 

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